Eu não vi a cara da morte. Mas pude senti-la. Ela estava
ali, esperando, espreitando, acompanhando a BR101. A qualquer momento pode
acontecer, vai acontecer. Então ela fica alerta, sentindo o cheiro e observando
as cores.
Ontem estava escuro. Só rastros de luzes brancas e vermelhas
e um rastro de verde que vez por outra se ilumina. Os olhos vidrados nas
páginas do livro. Os sentidos assombrados e imersos nas letras impressas.
Uma luz branca vindo em nossa direção, um vulto de carro
passando a nossa direita, o solavanco, o caminhão na outra pista vindo de
frente, o segundo solavanco, o livro que voa, o acostamento, e horas em espera.
Nenhum ferido, só um susto dessa vez, minha senhora, pode
ir. E ela, que nada, melhor ficar de olho nessa via. Paramos, esperamos. O
motorista tremia que nem vara verde, mas seu reflexo foi perfeito. Os moleques,
de bermuda, regata e chinelos, possivelmente achando tudo muito divertido,
ultrapassando um caminhão nas curvas de Iconha. Uns sortudos, é o que eles são,
de terem ido só parar no meio do mato.
Nada demais, esperar por duas horas pela polícia, mais duas
pela perícia, e seguir viagem até São Paulo. Cinco horas além do previsto.
Cinco horas a mais na tortura do medo de continuar no mesmo veículo. Foi uma
raspada de lado, feriu a dianteira direita. Eu me pergunto: até quando?
A 101 continua ali, com suas curvas, seu asfalto de péssima
qualidade, sua pista estreita e certos condutores assassinos irresponsáveis.
Não, não é culpa deles, a responsabilidade é só do governo... O que a grande
maioria de nós esquece é que todo ato feito em comunidade é um ato político,
não diz respeito só à nossa idiossincrasia.
E sabe o que a dona Morte nos diria se pudesse?
- Os seres humanos me assombram.
O Grito, de Edvard Munch, não me lembra a cara da Morte,
mas a cara da Solidão, aquela cujo egoismo afastou da vida.
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