quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Clichê Literário


Cheguei eufórica de uma caminhada de nove horas por uma trilha, de onde você praticamente não vê sinal humano, cercada de água e com cachoeiras, piscinas naturais, hidromassagem, tudo talhado nas lajes marginais. Ainda por cima, ao final dessa jornada, fomos premiados com um mergulho na represa de Itupararanga. Cheguei em casa, atualizando com a internet, a notícia, que não era uma, Eduardo Coutinho, morre aos 80, esfaqueado, talvez pelo filho esquizofrênico, Philip Saymour Hoffman, encontrado morto aos 46, de overdose de heroína. Fiquei meio mal. Não gosto de mortes. Principalmente mortes de pessoas que eu admire, tenham alguma ligação com minha vida ou não. Isso confundiu minha cabeça.

Apesar da noite quase em claro, e da surra que eu parecia que levara, estava inquieta. Acendi um incenso e fiquei olhando minha estante de livros. No mesmo momento minha mente começou a enquadrá-las, mas pensei que livros não pedem imagens, e sim palavras.

Sou uma boa leitora, pelo menos me considero assim. Não, eu não leio até bula de remédio, mas rótulo de xampu sim, devo confessar. Adoro ler biografias, romances, clássicos, bobagens comerciais, livros de teatro, e variadas áreas do conhecimento que me façam entender quem eu sou e quais são as coisas que tanto me inquietam. Todo resto é bobagem. Não me levem a mal, estou falando de mim. Mas se alguma carapuça fez saci...

Essa busca por mim mesma me faz mergulhar na arte, tentar entendê-la, sentir a estética, mais que vê-la. Entenda aqui arte no sentido mais genérico do que conceitual. É buscar o que me encanta. Por isso escrevo histórias, na esperança antiga de queimar o negativo. Por isso enceno papéis, disfarçando diferenças, acentuando semelhanças.

Assim é minha relação com os livros, uma busca de entendimento, mesmo que nem tanto racional. Emocional talvez. Estou sempre lendo alguma coisa. Por vezes chego a ler até quatro livros de uma só vez. Isso explica o porquê de ler alguns em dois dias e outros em um ano. Vão complementando-se e opondo-se, de acordo com minhas necessidades. E existem aqueles que param no caminho.

E foram esses que me chamaram a atenção desta feita. Por que eles ficaram no caminho, ou eu que fiquei. Algumas vezes os reencontramos tempos depois. Por outras vezes juramos que ainda terminamos. Outros simplesmente deixamos em silêncio. Será que existe alguma coisa em comum entre eles, ou será que de alguma forma eles me expunham de maneira a me incomodar? Resolvi rememorar alguns. Vai que faz sentido.

Talvez vocês pensem, “Ah! Ela agora entrou na modinha de fazer listas”, “Os 294 livros que não terminei de ler”. Vai ver que foi isso mesmo. A mim mais parece que é também só uma procura, daquelas em busca de algo em si.

Quando eu tinha uns dez anos de idade, comecei a ler Macunaíma, de Mário de Andrade. Confesso que achei muito difícil entender algumas coisas. Acho que na época era mais fácil eu entender de mitologia grega, que eu começara a conhecer. Talvez algum tabu da criação. Nos encontramos depois, bem depois, quatorze anos depois, foi paixão fulminante, dessas que se tem aos vinte e poucos anos.

O primeiro livro de Gabriel Garcia Marques que comecei a ler foi O Outono do Patriarca. Períodos muito longos cansavam-me, parágrafos inteiros sem pontuação, num fôlego só. Ali na frente eu já não sabia onde estava. E cada vez que pegava o livro pra ler, quase que começava do zero novamente. Dei de ombros. Não me dei muito bem com Garcia Marques. Até que Memórias de Minhas Putas Tristes me caiu às mãos. Engoli o livro. E fui correndo conseguir um exemplar de Cem Anos de Solidão. Sim, eu e Gabriel fizemos as pazes, e tornamo-nos melhores amigos. E O Outono do Patriarca? Acho que emprestei pra alguém, não está aqui na estante, logo agora que eu queria lê-lo.

Durante um curso de interpretação, minha turma iria fazer uma montagem de O Homem do Princípio ao Fim, do Millôr Fernandes, a mim coube o monólogo de Molly Bloom, do já lendário “não lido” Ulisses de James Joyce. Eu não fazia ideia de quem era Molly Bloom. Achei que precisava ler o livro. Paulinho achou um exemplar incrível, capa dura, em um sebo na Augusta. Presentão de Aniversário. Aí fiquei sabendo que muita gente não consegue terminar de ler esse livro. Mas não acho que parei só para fazer parte dessa estatística.

Aventuras de Alice no País das Maravilhas, me deu inspiração para o título de uma peça em um ato que escrevi, e nem cheguei em Através do Espelho. Lewis Carroll me desculpe, não tem nada com aversão às suas supostas taras. Peças de tetro gosto de ler sem interrupções, pa-bum, de uma vez! Mas emperrei em O Diabo e o Bom Deus, do Sartre. Em Fausto, de Goethe. Até hoje reabro o meu bom e velho Tudo que é Sólido Desmancha no Ar. Mas vou continuar tentando, Senhor Berman, estou quase lá, chegando no fim, há quase vinte anos.


Agora aqui estou eu e Umberto Eco. Umberto Eco e eu. Pela terceira vez. O Nome da Rosa e as referências que não tive.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

De cara com a 101

Eu não vi a cara da morte. Mas pude senti-la. Ela estava ali, esperando, espreitando, acompanhando a BR101. A qualquer momento pode acontecer, vai acontecer. Então ela fica alerta, sentindo o cheiro e observando as cores.

Ontem estava escuro. Só rastros de luzes brancas e vermelhas e um rastro de verde que vez por outra se ilumina. Os olhos vidrados nas páginas do livro. Os sentidos assombrados e imersos nas letras impressas.
Uma luz branca vindo em nossa direção, um vulto de carro passando a nossa direita, o solavanco, o caminhão na outra pista vindo de frente, o segundo solavanco, o livro que voa, o acostamento, e horas em espera.

Nenhum ferido, só um susto dessa vez, minha senhora, pode ir. E ela, que nada, melhor ficar de olho nessa via. Paramos, esperamos. O motorista tremia que nem vara verde, mas seu reflexo foi perfeito. Os moleques, de bermuda, regata e chinelos, possivelmente achando tudo muito divertido, ultrapassando um caminhão nas curvas de Iconha. Uns sortudos, é o que eles são, de terem ido só parar no meio do mato.
Nada demais, esperar por duas horas pela polícia, mais duas pela perícia, e seguir viagem até São Paulo. Cinco horas além do previsto. Cinco horas a mais na tortura do medo de continuar no mesmo veículo. Foi uma raspada de lado, feriu a dianteira direita. Eu me pergunto: até quando?

A 101 continua ali, com suas curvas, seu asfalto de péssima qualidade, sua pista estreita e certos condutores assassinos irresponsáveis. Não, não é culpa deles, a responsabilidade é só do governo... O que a grande maioria de nós esquece é que todo ato feito em comunidade é um ato político, não diz respeito só à nossa idiossincrasia.

E sabe o que a dona Morte nos diria se pudesse?


- Os seres humanos me assombram.



O Grito, de Edvard Munch, não me lembra a cara da Morte, 
mas a cara da Solidão, aquela cujo egoismo afastou da vida.