Mobiliário definitivo de memória. Memória transeunte na
cidade, memória gravada na carne. Ectoplasma.
Mobiliário, aquilo que se
relaciona a bens móveis. Um bem, um móvel. Motes para o estudo cênico do
Coletivo Cartão de Memória, núcleo formado por artistas das mais diversas áreas
interessados em investigar a memória. De que forma? Ainda estamos descobrindo.
Falo aqui da minha experiência pessoal, talvez comum a outros membros do
Coletivo. Talvez díspares.
Em 2012 ingressei na SP
Escola de Teatro cursando Direção. Um grande desafio, diante de situações de
minha vida privada, meus 37 anos de idade, o horário das aulas e a dedicação
necessária para um bom aproveitamento. Depois de mais de 20 anos de vida
teatral, na qual busquei construir meu embasamento teórico através da
experimentação e de uma leitura voraz, mas não conduzida. Não tinha a definição
de experimento cênico que tenho hoje. Possuía uma prática, nem sempre
eficiente, porém contundente. A escola significava a possibilidade de suprir
essa deficiência.
Módulo Azul, que na SPET quer
dizer Teatro performativo. Alguma coisa que nem os formadores possuíam
claramente uma definição consensual, talvez por ser um fazer cênico até certo
ponto recente, uma história que ainda está sendo escrita.
Fui descobrindo a partir da
pesquisa teórica que já degustara esse novo fazer teatral. Nunca fui afeita a
rótulos. Estes são limitadores. Os conceitos devem ser expandidos, modulados a
cada experiência. Assim sendo, busquei esquecer o conceito de performativo,
passando à investigação, sem juízo de valor e tentando esvaziar-me de ideias
pré-conceituadas.
A partir de uma proposta
artístico/estética dos aprendizes das áreas de cenografia e figurino,
sonoplastia, iluminação e técnicas de palco, passamos a investigar o espaço
montado nasala 34 do edifício da Oficina Cultural Amácio Mazzaropi, onde
funciona parte dos trabalhos da SP. Sal, linhas, cores, sons metálicos,
inspirados no trabalho de Lúcia Koch e Peter Greenaway. Junte-se a isso atores
disponíveis e destemidos, uma dramaturgia ativa, e a encenação foi tomando uma
corpo, definida sensorialmente e não conceitualmente – processo seguido até o
momento pelo Coletivo.
O mesmo sal que queima a
pele, tempera a comida, conserva a memória. Dor, cheiros, marcas e incômodos
transformados na pergunta: “como performar a memória?” Experimentamos, não
respondemos. E a resposta, sinceramente, é o que menos importou. A tentativa de
definir que memória é essa que desejamos performar leva ao questionamento de o
que é memória? Nunca foi base do trabalho tentar responder esta questão, mas
vivenciá-la da maneira mais instintiva possível.
A memória afetiva e pessoal,
através de objetos disparadores, trouxe histórias da vida pessoal de cada um
ali presente, misturadas a mitologias ligadas a memória. As moiras cegas, as
estátuas de sal, a mulher de Lot, o envolvimento do público. Fomos acusados de
melodramáticos, catárticos, psicodramáticos. Todavia, a inquietação dessa busca
não foi ultrapassada.
Longe de casa e da família,
quem era eu em São Paulo, buscando mais uma vez responder, de onde vim, para
onde vou? Inquietação mais banal e coloquial da humanidade, beirando um clichê,
mas que me atormentava deveras o pensamento e a alma. E quem disse que não
podemos ou devemos transferir para a arte nossos tormentos pessoais? Apesar da
encenação dividida, havia uma simbiose com meu parceiro de direção (o diretor
Cristiano Dantas, que não participa do Cartão de Memória) que facilitava e
enriquecia o processo.Não havia um texto a
investigar, buscar um conceito para então dar nossa versão. Ao contrário,
partimos da investigação para a construção da dramaturgia e posteriormente da
encenação, subvertendo a ordem conceito – forma. Particularmente, coloquei-me
no lugar de costureira, que monta uma colcha de retalhos mesclando tecidos
doados e bordados criados com pontos e linhas de cores diversos. Utilizando a
história dos outros para falar de mim, das minhas inquietações.
Assim a encenação foi construída,
através de sequências de workshops e procedimentos. Ao final do semestre e a
mercê das críticas, consegui falar do que queria, do modo que queria. Afinal,
como artista, estou falando de mim, do meu olhar sobre as coisas. Sem certo ou
errado, é o meu olhar.
Porém, essa investigação da
memória parecia querer levar-nos mais adiante. Finda a escola, parte do grupo
sentiu o desejo e a necessidade de continuar a pesquisa, ainda pessoal, só que
nesse momento re-significada na cidade de São Paulo.
Uma das questões que mais
tocam o trabalho de encenação é a construção da identidade. “A psicanálise
enfatiza eu tudo quanto de fato impressionou nossa mente jamais é esquecido,
mesmo que permaneça muito tempo na obscuridade do inconsciente. Essa
constatação evidencia a importância da memória para vida”, afirma Maria Helena
Martins, em seu livro O Que é Leitura (Coleção Primeiros Passos, Braziliense),
acrescentando ainda que poderíamos perceber o esquecimento como mecanismo de
defesa.
Para o estudo cênico Mobiliários I, seguimos o mesmo
processo da sala 34. Workshops que geraram procedimentos cênicos, dentro de uma
loja de móveis antigos, com objetos cheios de história. Ali era possível
mesclar as histórias pessoais com as histórias observadas nos objetos. Eram
marcas a serem memoradas. Bruno Matos, em seu artigo Rituais de Desacelaração,
afirma que é preciso reconhecer que “não é possível dar conta de todas as
coisas, e que precisamos fazer escolhas se quisermos ter experiências mais
profundas e intensas – experiências mais fáceis de serem lembradas”.
Buscamos construir
narrativas baseadas na memória individual inter-relacionada com a memória
coletiva, a partir da relação com o espaço e com o público.